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25 de julho de 2003

Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido. Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (unzinho e eu ganhava a sena acumulada), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste...
Agora mesmo, neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz - aliás, o nome do bar é Imaginário -, sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:
- Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo.
E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.
- Por que? Sua vida não foi melhor do que a minha?
- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção.
Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia...
- Eu sei, eu sei... - disse alguém sentado ao lado dele. Olhamos para o intrometido... Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:
- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.
- Como é que você sabe?
- Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me atirei... Levei um chute na cabeça. Não pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante...
- Ele chutaria para fora. Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado dele, que em seguida se apresentou:
- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença. Não seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula. O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio...
- E o que aconteceu? - perguntamos os três em uníssono.
- Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?
- Você...
- Morri com 28 anos.
- Bem que tínhamos notado sua palidez.
- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo...
- E ter levado o chute na cabeça...
- Foi melhor - continuei - ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado...
- Você deve estar brincando! - disse alguém sentado a minha esquerda. Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.
- Quem é você?
- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público - vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente. Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.
- Quem é você? - perguntei.
- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.
- E...?
Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo... Creio que a vida não é feita das decisões que você não toma, ou das atitudes que você não teve, mas sim, daquilo que foi feito. Se bom ou não, penso, é melhor viver do futuro que do passado.


Autor: Luiz Fernando Veríssimo

Texto retirado do TudoDeBom.Com.Br

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